quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tiririca e o sentido da democracia


Consolidada a eleição de Tiririca, amplamente antecipa pelas pesquisas, vários comentários surgiram. Não são novos e repetem muito do que foi dito desde o primeiro momento em que o agora ex-palhaço anunciou sua candidatura. Várias pessoas gritaram sobre o absurdo de sua campanha, sustentada pelo lema "pior do que está não fica". Outros lamentaram as escolhas do povo, culpando sua ignorância e questionando os procedimentos da nossa democracia.
Candidatos como Tiririca não são exatamente uma novidade. A mesma polêmica surgiu durante a campanha e posterior vitória de Clodovil, que dizia abertamente não ter plataforma política alguma. Todas as eleições realizadas após o período da ditadura militar contaram com candidatos polêmicos por utilizarem o humor, muitas vezes a respeito da própria imagem e capacidades. A novidade dos últimos anos é que alguns começaram a ser eleitos.
O historiador José Murilo de Carvalho explica, no livro Os Bestializados, a imagem que as elites do Brasil imperial tinham do povo no momento da proclamação da República. O movimento que derrubou a monarquia não contou com a participação popular, o que levou Aristides Lobo (jornalista e propagandista republicano) a afirmar que "O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava". A frase reflete o espírito das elites da época: o povo é uma massa ignorante, que nada sabe sobre os rumos da nação, sendo sua participação geral a de meros espectadores. E na verdade para tais elites estava tudo bem assim! O povo de fora do processo político e suas manifestações de descontentamento sendo duramente reprimidas, como ocorreu em Canudos, na Revolta da Vacina, no Contestado e, bem mais recentemente, com os sem-terra em Carajás.
Carvalho nos oferece uma interpretação diferente. O povo não era bestializado. Eles eram bilontras, ou seja, espertalhões, gozadores. Sabiam que muito bem que a política era um jogo de representações que alteravam muito pouco sua própria realidade cotidiana. Nesse sentido tratar a política como algo verdadeiro é que seria o erro, a ilusão.
A eleição de Tiririca deve receber uma análise muito mais profunda do que vem recebendo. Ela pode representar a manifestação de um parcela do povo que grita abertamente que a política é um jogo no qual as camadas populares saem sempre perdendo. Já que a política não é feita com seriedade melhor deixá-la com um profissional em palhaçadas. Mas também pode expressar que Tiririca conseguiu atingir um público que não se sente representado pelos atuais políticos. Ele que sofreu com a seca, que veio tentar a vida em São Paulo como tantos outros retirantes; que não teve acesso a uma boa educação, como tantos brasileiros. Resta saber quem é o mais iludido: o que acredita nas promessas de candidatos "sérios", muitas das quais não serão certamente cumpridas, ou quem faz a opção por um candidato insanamente transparente em sua ignorância?
Quer seja como uma forma de protesto ou como a expressão de uma identificação do eleitorado o fato é que o regime democrático estabelece o direito de Tiririca em concorrer, ser eleito e assumir o cargo. Contestar tal direito popular é um verdadeiro atentado contra a democracia! É desejar retornar ao tempo em que o voto não era livre para todo cidadão brasileiro: no período imperial havia o critério censitário (pela renda) e durante muito tempo na República era necessário ser alfabetizado. Quem não se enquadrava em tais condições tinha o dever de pagar seus impostos e cumprir as leis, mas não podia participar da vida política. Levamos muito tempo até a compreensão de que os setores mais pobres da sociedade também devem participar do processo político.
Antes de questionarmos os direitos de Tiririca e seus eleitores devemos questionar os políticos alfabetizados e bem formados, os que já estão na política há muitos anos, que não conseguiram criar as condições necessárias ao estabelecimento do bem-estar para toda população.
Eu não votaria em Tiririca. Ele não representa o que acredito ser necessário para um político (assim como diversos outros candidatos que foram eleitos). Mas abomino com muito mais força qualquer discurso que pretenda restringir o direito da livre manifestação popular através do voto! O autoritarismo deve ser sempre combatido, principalmente quando aparece disfarçado como "defensor" da democracia.

4 comentários:

  1. Vitor,

    gostei de sua análise quanto ao fenômeno Tiririca, mas principalmente do cuidado que devemos ter quanto aos sistemas despóticos que estão presentes nas representações sociais...

    Um abraço
    Samuel Mendonça

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  2. Caro professor,
    segue link do manifesto assinado pelos intelectuais da educação.
    Abraços do seu primo Tiago.

    http://www.viomundo.com.br/politica/professores-denunciam-bonapartismo-de-serra.html

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  3. Valeu Tiago! Li o manifesto e encontrei vários de meus ex-professores.
    Abraço!

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